3/5/2023 0 Comments Umark 100p![]() ![]() Era o homem que dormia ao meu lado todo dia, e eu não conhecia. Por muito tempo senti saudades daquele homem, tão íntimo, que eu não ouvira a voz. O tempo passou, as pessoas eram as mesmas, o caminho também, mas faltava algo naquele ônibus. Um dia, ao embarcar, percebi que o banco estava vazio. Juntos, só caíamos de sono, dentro daquele ônibus. O homem nunca me contou um segredo, ou os segundos que faltavam para o ano virar. Não fizemos uma trilha com fotos de GoPro, nem dividimos uma série na academia. Não conversamos, não assistimos a um filme cult. E a cada caminho casa-trabalho, das 7h20 às 8h, dividíamos um banco de ônibus, uma janela, e um apoio de braço. O homem que dormia ao meu lado todo dia nunca abriu os olhos para mim, sequer me deu "bom dia", mas, de certa forma, ele me tinha como sua maior admiradora, que na loucura de imaginar quem ele seria, adormecia. Não teve filhos, cultivava 4 poucos e bons amigos, uma samambaia na varanda e eu, que – religiosamente (só no sentido figurado mesmo), sentava ao seu lado no banco do ônibus. Em sonhos, buscava tudo que não conseguira até os atuais 47 anos de idade. O homem que dormia ao meu lado todo dia era também um homem triste. Qual o sentido da tristeza se não há comida gostosa para nos confortar? O corpo era fraco, e a alma solitária. Que seu plano de saúde estava com a cobertura limitada e que seu biscoito preferido tinha 479 mg de sódio. E nunca conseguiu concluir se era melhor permanecer sem enxergar, ou ser capaz de ler que sua conta de luz iria aumentar em 30%. O homem que dormia ao meu lado todo dia também era míope. Além de uma mochila preta, o homem carregava consigo falta de esperança que o levou a um caminho medíocre, onde o ponto de descanso estava em uma poltrona de couro velho, numa sala com iluminação fraca. E pela altura do campeonato, nunca iria ter. Em dias nublados, contrastava com o cinza, e em dias de Sol, sua cor irradiava toda luz que ele não tinha. Como Roberto Carlos no especial de final de ano, como o mar do Caribe, como os olhos da Xuxa: o homem estava sempre em tons que me lembrava o céu. O homem que dormia ao meu lado todo dia gostava de azul. Seu corpo nunca foi meu foco de atenção, mas era impossível deixar de reparar uma barriguinha que pulava o cós de sua calça e deixava à vista o resultado do pão com ovo, ingerido diariamente, às 20h30, enquanto passava o Jornal Nacional. Com 1,65 de altura, 10 quilos acima peso, ou 15. Ele era aquilo que um conhecido meu chama de “compacto”. Ao lavar o rosto, escorregava suas mãos pelos cabelos e os enxaguava com a espuma do sabonete mesmo. ![]() ![]() Ele era baixinho, tinha cabelos dignos de preguiça ou de quem achava um grande desperdício gastar dinheiro com shampoo masculino (convenhamos, eu também acho). ![]()
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